terça-feira, 23 de agosto de 2011

Os males


Nas minhas voanças em busca de sabença, passei por diversos lugares criados pelos pensamentos e sentimentos humanos e fiquei um tempão sem dar notícias.
Numa manhã linda, pra lá da biblioteca, encontrei um bosque que tinha no seu centro uma clareira.
Devia se chamar palco e não clareira, porque lá encontrei muitos artistas, cada um querendo puxar as luz sobre sua personalidade:
Estavam conversando animados, e eu cheguei, fiquei olhando dum galho, depois desci para uma pedra que ficava bem perto de onde eles estavam.
-- Olhem! Um elfo azul! disse um deles
-- Que elfo, Ganância, você é burra mesmo, disse Julgamento. É um pássaro!
-- Vem aqui, passarinho, chamou Luxúria, um sentimento em forma humana. E eu fui!
-- Quem são vocês? Indaguei do ombro da Luxúria, que me olhava de um jeito estranho.
-- Somos os maus sentimentos humanos, respondeu um ser semelhante a um humano, muito bem vestido.
-- Quem é você? Perguntei.
-- Sou o Orgulho, o mais inteligente e bonito sentimento que você vai conhecer.
-- Ah! Metido a besta! Eu é que sou, meu nome é Vaidade.
-- Essa minha irmã é chata mesmo, não ligue não, passarinho.
-- Ah, já ouvi falar de você! Falei olhando pra Vaidade. Ouvi dizer que você é a última fronteira.
-- E sou mesmo! Respondeu. Quando o homem subjuga a vaidade ganha uma uma chave dourada chamada Humildade e essa chave abre todas as portas do mundo.
-- Ah! Exclamei, imaginando como seria a tal chave.
-- Somos os males, mas não se assuste, passarinho, que só vivemos nos humanos.
-- Eu sou o Ding, disseram que um dia vou ser humano também.
-- Então vai ser bom você nos conhecer bem, porque vamos andar com você por muitas eras, disse Ambição.
-- Ah é? Por que?
-- Porque somos parte da personalidade humana, a parte que faz ele sofrer, até que nos conheça e nos conquiste, disse Avareza.
-- E o que é preciso fazer para conquistar vocês todos? Perguntei.
-- Sofrer! Responderam rindo todos, em uníssono.
-- Mas não somos conquistados todos assim fácil, é preciso conviver com cada um de nós, separadamente e enquanto o humano não se identifica conosco, não se apercebe da nossa existência, ele sofre as consequências dos atos que pratica. Explicou toda professoral a Gula.
-- Mas, e os bons sentimentos? Perguntei, onde eles estão?
-- Nos humanos também, alguns nos substituem por esses bons, mas só depois que conquistou o mal. Nós nunca andamos juntos, apenas convivemos com eles na alma dos humanos, aí fica a maior confusão. Disse Cólera.
-- Você é o mais perigoso, falou o Julgamento. Pois quando aparece toma conta de todas as faculdades e rouba descaradamente o discernimento e o livre arbítrio, e o humano faz coisas que não faria se tivesse no comando.
-- Nossa!
-- É passarinho! Eu, a Ira, sou fichinha perto da Cólera. Quando um humano é tomado pela Cólera ele fica extremamente destruidor, inclusive destruindo outros humanos.
-- É, e eu, o Ódio, sou um veneno que o humano toma esperando que o outro morra...kakakaka!
-- Não ligue não, Ding, esse meu irmão gêmeo, nasceu primeiro e se acha o mais importante do mundo.
-- Uai, Ira, pois olhe lá o mundo, quem tá mais lá do que eu?
-- Eu! Levantou a mão a Luxúria!
-- Calma, eu disse. Isto aqui tá parecendo a escolinha do Professor Raimundo! Kikiki
-- Vão devagar senão eu não entendo.
-- Mas não é para entender mesmo. Disse o Julgamento
-- O que você faz? Perguntei
-- Eu faço o humano julgar os outros humanos o tempo todo. E julgar é pior que assassinar, pois projeta uma energia que vai colar no outro humano, fazendo com que ele aja mais e mais de acordo com o que foi julgado dele, fazendo-o sofrer, depois eu volto pro humano que julgou e fico ali por perto e ele sofre também, das consequências dos atos daquele a quem julgou.
-- Puxa! Mas o que leva um humano a julgar assim outro igual a ele?
-- Eu, falou a Vaidade. Eu levo o humano a pensar que ele é melhor que o outro e às vezes ele julga uma pessoa inocente, que não fez aquilo que quem julgou pensa que ele fez. E quando ele diz isso a outras pessoas, o Julgamento se transforma em maledicência. Aí o outro humano, que também está comigo, vaidade, para parecer melhor que o julgado, também fala e a maledicência se transforma em fofoca.
-- Puxa, vocês são transformers!
-- Dos piores, mas não fazemos maldade por nós mesmos, apenas servimos às necessidades dos humanos, eles se servem de nós e depois sofrem, falou a Inveja.
-- Mas, o que os humanos podem fazer pra conquistar e se libertarem de vocês, definitivamente?
-- Primeiro sofrer. Com o sofrimento, aparece a dor que é a grande mestra. Disse a Preguiça. Aí a dor ensina o humano a nos enxergar em si mesmo. Isso chama consciência. Quando isso acontece, ele fica envergonhado e deprimido porque ninguém pode apagar o passado.
-- E depois?
-- Depois ele se promete a não se deixar dominar de novo, o que quase nunca acontece, pois os humanos demoram pra aprender. Tudo é decisão deles mesmos. Disse o Apego. Porque eles apreciam as ilusões, que são as sensações de ter, ser, estar, parecer e experimentar.
-- Como um bolo de chocolate! Gritou a Gula, esganiçada. Todos riram!
-- Nossa! Que confusão, eu disse. Como é que vou colocar ordem nessa bagunça toda que vocês fizeram no meu pobre coraçãozinho?
-- Com bons sentimentos, bobinhho! Falou Soberba.
-- Como o Amor? Perguntei
-- Não! Gritaram todos ao mesmo tempo, arregalando os olhos.
-- Não fale essa palavra porque ela evoca essa Coisa Aí! Disse o Ódio.
Nesse momento, uma luz rosa começou a se espalhar na clareira, como se fosse uma nuvem se formando e do meio dela uma outra luz, menos diáfana, mais intensa, como um farol amarelo ouro tomou a forma de um ser humano enorme, brilhante. Todos os sentimentos se ajoelharam e colaram o rosto no chão de terra, escondendo os olhos com os braços, tremendo de medo.
Eu fiquei olhando aquilo com a maior cara de ué! Achando bonito.
Comecei a sentir uma coisa gostosa no peito, um calorzinho e uma paz que nunca tinha sentido antes.
Olhei pra Coisa, meu bico cor de rosa, ficou quase branco, meus olhos se abriram mais pra poder pegar mais daquela luz e eu senti um sorriso quase humano tomar conta de mim.
A Coisa falou com uma voz tão deliciosa que eu me sentia flutuar naquele som.
-- Eu sou o Amor! Tenho várias formas de me mostrar aos seres humanos, conforme ele vai dominando os maus sentimentos e tornando-se mais puro e humilde, eu vou me tornando mais real no seu ser. Isso se chama Evolução.
Eu não conseguia articular nenhum pensamento, estava totalmente tomado por aquela sensação deliciosa, cálida de paz.
-- Eu sou o Amor! Quando os seres humanos evoluem e transcendem sua condição de humanos pelo domínio de si mesmos, eles se transformam em Mim. Daí passam a ver os outros humanos como os humanos veem os bebês, com um sentimento de carinho, cuidado e suavidade.
Fiquei sentindo Aquilo um tempão, a Luz do Amor não estava mais ali, mas uma sensação como se fosse um perfume, ficou no ar enquanto se desvanecia aquela nuvem rosa.
Quando abri os olhos como se tivesse sonhado, não havia mais ninguém lá, só o silêncio e, numa pedra alta estava o meu amigo Mocho.
Seu pequeno bico entre seus olhos enormes parecia sorrir, quando ele falou:
-- Gostou da lição, passarinho?